A Tribo dos Guerreiros Pintados

Havia dois dias que Bremmer vagava pela floresta sem encontrar rastro algum. O brotar das pequenas flores declarava que era chegada a hora. Sentou-se então ao lado do riacho a fim de abastecer sua provisão de água antes de voltar à caçada, porém sua fadiga mental – que já ultrapassara a física – imobilizou-o por alguns momentos, levando seus pensamentos de volta à tribo, trazendo lembranças da última noite junto da amada.

Naquela noite, a mesma fogueira, que iluminava a clareira na floresta, pintava de vermelho os rostos embriagados daqueles que dançavam ao seu redor, enquanto Bremmer e Aunya, em silêncio, observavam as chamas brincalhonas, que inocentemente devoravam toda a lenha. No interior de ambos, outro fogo ardia.

Os dois esperavam ansiosamente pelo solstício da primavera, dia em que selariam sua união. Em seu silêncio, Bremmer vislumbrava-se como novo chefe do clã, ao mesmo tempo em que padecia sobre o peso das novas responsabilidades.

Aquelas foram as últimas horas antes da grande caçada.

De grandes guerreiros era formada aquela tribo, tão grandes e fortes quanto as árvores que cercavam suas casas. Dividiam, com outras tribos, o coração das densas florestas do velho mundo, porém cada qual vivia de acordo com suas próprias crenças e tradições, e às vezes até se confrontavam para mantê-las.

Herdeiros de costumes antigos, Bremmer e sua tribo reverenciavam a Terra como seu bem mais sagrado, chamando-a carinhosamente de “Grande Mãe”, pois através dela todo seu provento lhes era oferecido de bom grado. Apesar de serem grandes e fortes, eram pacíficos e viviam em harmonia com a natureza.

As mulheres se ocupavam de tarefas voltadas à criação, cuidavam dos seus e dos outros, abençoavam os grãos e os plantavam, celebravam a vida – a cada novo sol que se espiava no horizonte. Além de alimentar, cabia-lhes também a tarefa de aquecer, de pedir e de agradecer, a cada inverno e verão que se passava. Entretanto, tão importante era a tarefa dos homens, que desde muito jovens já se tornavam guerreiros. Naquele local, um homem tinha que se mostrar valente e digno – e isto acontecia cedo – pois aos homens eram entregues a responsabilidade de proteção da tribo e a provisão dos alimentos, provenientes da caça e da pesca. Neste equilíbrio viviam, cumprindo suas funções durante o dia, para que à noite todos pudessem se juntar ao redor da fogueira, como uma grande família.

O sol, que já ameaçava cair por trás do monte, declarava que algumas horas já se haviam passado desde que Bremmer se sentara à beira do riacho. Apesar de toda confiança que mantinha em si, como caçador e guerreiro, ainda assim era difícil espantar o fantasma do fracasso. Depois do longo inverno, a caça ainda era escassa, porém, naquele momento, dela dependeria a celebração de sua união com Aunya e a comprovação de que ele era digno de ser o novo chefe do clã.

Como um suspiro que limpa a alma, um vento forte soprou, trazendo-lhe uma ultima lembrança. Pouco antes de sua partida, junto de Aunya, debaixo do grande carvalho, caíram sobre Bremmer três folhas de tom avermelhado, e naquele momento ele disse: Veja Aunya, a Grande Mãe nos abençoa.

“Voltarei com boa caça, para nossa celebração”

Reuniu então todas as suas forças e levantou-se mais rápido do que a corsa que almejava caçar.

Atento a cada movimento, a cada galho que balançava ao vento, Bremmer andou. E já próximo a um território hostil, avistou o animal. Escondeu-se por trás dos arbustos, tentando manter-se calmo, para que sua respiração ofegante não o denunciasse. Tirou uma flecha do bornal, virou-se devagar e esticou-a no arco, mirando no coração, para que o animal não sofresse. Morte limpa, rápida. Pediu licença à Grande Mãe, agradecendo-a antecipadamente pela provisão recebida, porém, já prestes a lançar sua flecha, desistiu e baixou novamente o arco.

Ao lado da corsa, estavam dois filhotes.

Bremmer não podia. Este feito iria contra suas leis, contra as leis da Grande Mãe, pois matando aquela corsa, mataria também os filhotes.

De olhos fechados, cerrou os dentes. Em sua mente um dilema o consumia. Abriu novamente os olhos e avistou dois caçadores de um clã rival, preparando-se para abater o animal.

Sem pensar nas consequências Bremmer lançou-se gritando, de arco em punho, na direção dos guerreiros, que naquele momento lhe desferiram a flechada, antes destinada à corsa. No furor da situação, um emaranhado de corpos atracados rolou barranco abaixo, arrastando Bremmer e a corsa para dentro de uma armadilha, um buraco profundo escondido no meio da floresta.

Ferido e cansado, Bremmer tentou, sem sucesso, escalar as paredes escorregadias daquela cova. Surgiu-lhe então a ideia de subir no animal a fim de alcançar o topo, porém na borda do buraco espreitavam os filhotes da corsa, desesperados para novamente juntar-se à mãe. Naquele momento Bremmer percebeu que só havia chance para um.

E mais uma vez seu destino de deparou com o da corsa, e o dilema novamente o fez pensar. Sentado no fundo daquele buraco, Bremmer fitou os filhotes do lado de fora, em seguida olhou para a corsa – que assustada e ofegante retribui-lhe o olhar. E então depois de um longo suspiro Bremmer disse para a corsa.

– Arrisquei minha vida para te salvar da primeira vez, e não vou te deixar morrer aqui.

Neste momento o guerreiro concentrou toda força que lhe restara, no interior de seu ventre. Com um grito gutural agarrou o animal empurrando-o para cima e enfim o lançando para fora, sem perceber, porém, que durante a subida os cascos do animal feriram seu corpo, dilacerando a carne.

Esfacelado em sangue, Bremmer caiu sobre suas pernas; suas últimas forças haviam partido juntamente com a corsa.

Jogado no fundo daquele buraco, o guerreiro regozijava-se de seu feito ao mesmo tempo em que uma profunda tristeza lhe invadia o coração. Sua noiva, seu clã, seu fracasso, e pediu então à Grande Mãe que escolhesse um guerreiro honrado para substituí-lo.

Neste momento, uma tempestade se formou e soprando forte cobriu de folhas o seu corpo ferido – as mesmas folhas que há pouco haviam lhe abençoado – e então percebe que, mais uma vez, está aos pés de um velho carvalho. Percebe também que a corsa ainda o observa, e em seu delírio ela chora pesadas lágrimas, que escorrem juntamente com a chuva lavando seu corpo.

Com um enorme estrondo, um raio cai sobre a árvore, partindo-a ao meio, estremecendo e clareando toda a terra. O guerreiro percebe que é chegada sua hora e sem forças entrega-se ao sono da morte. Seus olhos semicerrados enevoavam a lembrança das paisagens, tal como brumas que cobrem um lago pela manhã. O som da chuva caindo se torna tão abafado quanto a onomatopeia de um mergulho. Sente então seu espírito leve e aquecido flutuando pela floresta e finalmente o beijo doce e suave da Grande Mãe, agradecendo-lhe. Como último esforço o guerreiro abriu os olhos. Ao seu lado, estava sua amada.

Confuso olhou para seu corpo e viu que, no lugar dos cortes, magníficos desenhos em forma de animais lhe cobriam a pele. Caiu de joelhos pedindo perdão por ter falhado e não ter honrado o casamento com a grande caça.

Aunya sorriu com doçura. Agradecendo pela humildade do futuro marido e revelou:

– Em meio a tempestade, a Grande Mãe enviou-nos um sinal que cortou o céu e mostrou-nos o caminho. Os guerreiros seguiram o sinal e chegaram até você, que aos pés do velho Carvalho descansava, junto dos dez javalis que caçou.

Bremmer contou sua história, e daquele dia em diante, naquela tribo, todo ato de bravura passou a ser gratificado com adornos na pele, iguais aos que Bremmer havia ganhado da Grande Mãe. Pequenos desenhos, sagrados troféus, mostrando que naquele corpo reside o espírito de um grande e honrado guerreiro.


por Nigra Morus